Agosto é mês do folclore, então, mestre Moreira pediu que eu escrevesse sobre folclore. É mais fácil escrever sobre “Como mentir com estatística”, mas Moreira mandou. Fazer o que? Na década de quarenta, minha idade próxima dos dez, meu pai estava construindo sua fazenda em Camilinho. Casa de tirar leite, currais de réguas, galpão: para máquinas, para carros de boi, para tralha de tropa. E mais, reforma na casa sede. Muitos peões, alguns com profissão definida como Manoel Saraiva que era carpinteiro, na época e no local, diziam Carapina. Manoel era sistemático e uma de suas idiossincrasias era manter pequena fogueira de cavacos, ali, no local de trabalho. Volta e meia ele atiçava o fogo, colocava mais lenha e acendia o cigarro de palha. À noite, sempre frias nos meses de seca, aumentava-se a fogueira, e os peões, acocorados ou sentados no que encontravam ao redor, se aqueciam. Este é o cenário, mas devo apresentar, ainda, o personagem: José Lopes. caboclo esperto, daqueles que enrolam água e dão nó, bem falante e ladrão como rato. Meu pai tinha venda de secos e molhados, ali na venda, José Lopes me convenceu que em se plantando um prato de amendoim era possível colher até um alqueire; considerando minha receptividade à conversa ele fez a proposta que foi imediatamente aceita: Eu lhe entreguei o prato de amendoim em troca de meia saca, na colheita, quatro meses depois. Bom negócio!, mas depois, ele me explicou: o amendoim era velho e poucas sementes germinaram, apareceram as saúvas e a seca. Meu consolo é que não fiquei com o saco cheio, mas José Lopes, certamente, saiu da venda já saboreando o amendoim e rindo da minha inocência. . Meu pai e meu primo, Antônio Baiano, perceberam que alguém estava surripiando fubá lá no moinho de pedras. Desconfiaram de José Lopes, e ficaram atentos para dar o flagra. Antônio notou menos fubá do que o devido e deu busca nos possíveis esconderijos, encontrando o produto do roubo no pequeno canavial ao lado do curral. Combinou com meu pai e, à noitinha, ficaram num ponto de observação. José Lopes, esperto, percebeu a manobra e foi direto para sua casa. Dia seguinte, horário combinado, os pseudo detetives no ponto de observação e, para surpresa deles, o saco de fubá já havia desaparecido. Muito bem! reunidos, em volta da fogueira, José Lopes falava: --“Meia noite é hora das águas mortas” – e continuava – “Fica tudo paralisado, as águas só voltam a correr quando o galo cantar”. Eu ficava amedrontado, queria confirmar, mas como me levantar à meia noite e verificar? E se a entidade que determina a paralisação das águas não gostasse? Ficava, então, sob as cobertas, suando e rezando para que algum galo cantasse. Tinha o lobisomem que, durante a quaresma, ficava solto, quase sempre sob uma goiabeira, comendo goiabas. A história do lobo preto, feiticeiro, astuto, afirmava ele –“As galinhas que dormem na laranjeira e não no galinheiro, ali perto do curral, certamente, serão comidas pelo lobo; para ele não tem problemas com altura. O lobo preto vê a galinha no alto e, com o poder de feitiço, faz com que a penosa lhe caia na boca”. – naquela região não tem lobo preto, apenas, o guará que é vermelho, mas na minha imaginação de criança eu via lobos de todos os tamanhos e sentia todos os medos. São Cipriano, conhecido pelas fortes orações. José Lopes sabia muitas delas, dizia ele – “Para atravessar um rio, não importa quão largo e quanto está cheio de água, deve se dar as costas para o rio, fechar os olhos e fazer a oração de São Cipriano. Ao abrir os olhos já se está na margem oposta do rio”.--- são coisas da religião, São Cristovão faz imenso esforço para ajudar os viajantes nas travessias dos rios e São Cipriano resolve o mesmo problema com facilidade. A moça que teve um romance com um padre e foi transformada em mula sem cabeça. Pergunto: e o padre ficou ileso nesta história ou quem sabe foi transformado no cavalo das patas de fogo? Ela, a mula sem cabeça trotava pelas estradas, conforme informava José Lopes, e assim perturbava mais os meus sonos. A fala de José Lopes não tinha limites, dizia ele --: “Exatamente, à meia noite, uma mulher, muito alta, toda vestida de branco, sai da Capela de N.S. das Dores e desce, vagarosamente, até o cruzeiro, ajoelha-se e reza. Volta, então, para a Capela e desaparece”. --- terminada a reunião eu percorria os cem metros, até minha casa, mas sem olhar na direção da capela. E se a mulher tivesse saído mais cedo? As lendas quase sempre traziam a figura do demônio, pintado de diversas formas, e acontecia muitas vezes na casa de roda. Casa de roda é uma pequena fábrica de farinha, normalmente, de propriedade do fazendeiro. A fabricação da farinha era responsabilidade do meeiro que mudava, com a família, para um ou dois quartos anexos à fábrica. A fabricação de farinha tinha ação social interessante. Moças: filhas, sobrinhas e vizinhas do meeiro participavam e, os trabalhos se estendiam noite adentro. Os rapazes da vizinhança, terminada a tarefa diária, iam para a fábrica e, ali, num ambiente alegre ajudavam no trabalho. A fase inicial da fabricação caseira de farinha é a raspagem da mandioca, a retirada da película externa, de cor marrom escuro. As pessoas gostavam de fazer esta tarefa atuando em dupla: o primeiro raspava metade e atirava a mandioca aos pés do parceiro que raspava a metade restante. Quando o primeiro era mais rápido as mandiocas, semi raspadas, acumulavam se aos pés do outro. Caso contrário o parceiro batia com a faca no toco reclamando pela moleza do primeiro. Em qualquer situação sempre havia gozação de todos que estavam em volta do monte de mandioca por raspar. Assim, estabelecia-se relacionamento de moças e rapazes e a brincadeira continuava. As crianças da fazenda também participavam, quase sempre apareciam, enquanto torravam as últimas fornadas do dia, trazendo queijo e rapadura e a senhora do meeiro, já esperando com a goma, fazia delicioso beiju, apreciado por todos. Ai vem a história de José Lopes: Nesta noite três rapazes levaram violão, cavaquinho e sanfona e proporcionaram momentos de alegria, mas a noite envelhecendo, as pessoas se cansando, alguns saíram outros se deitaram, apenas o trio permaneceu acordado e solando seus instrumentos. Um deles, o do violão, adormeceu, ali mesmo, sobre um couro de boi. Meia noite, certinha, entra no ambiente um frango pelado, sem uma pena sequer. Dois instrumentistas apavorados observam o grande frango caminhando lentamente na direção da prensa de massa, subiu na prensa olhou para os dois apavorados e falou – vai cair uma aza. O do cavaquinho, apavorado, -- se perguntava: o que vai acontecerr? Meu Deus! E o frango: --- vai cair outra aza. O da sanfona, quase morto de medo, se lembrou que assombração não aparece para três pessoas e sacudiu o dorminhoco do violão. O dorminhoco, em sono profundo, não acordava. E o frango, com voz lúgubre -- vai cair uma perna.-- Criava aquele suspense para a dupla de instrumentistas e para mim, imaginando a cena, vendo a prensa da fábrica de farinha de meu avo e o frango sobre ela, aquilo era o demônio, sem dúvida. Como isto vai acabar? Eu me perguntava. Finalmente, José Lopes terminava a história: o rapaz do violão acordou e o frango desapareceu.
Agosto é mês do folclore, então, mestre Moreira pediu que eu escrevesse sobre folclore. É mais fácil escrever sobre “Como mentir com estatística”, mas Moreira mandou. Fazer o que?